O Judiciário e a Definição de Tipos Penais: O Caso da Homofobia e Transfobia

 O sistema jurídico brasileiro é fundamentado em uma estrutura tripartite, composta pelos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, cada qual com suas competências e responsabilidades definidas pela Constituição Federal. Uma das prerrogativas exclusivas do Poder Legislativo é a definição dos tipos penais, isto é, quais comportamentos configuram crimes e quais penalidades serão aplicadas a eles. Esta atribuição está expressamente consagrada no Artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal, que estabelece que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

Consequentemente, o Código Penal Brasileiro, em seu Artigo 1º, estabelece que considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativamente com multa. Assim, a definição de um tipo penal é reservada ao Poder Legislativo, cabendo ao Congresso Nacional a tarefa de elaborar e promulgar as leis que determinam as condutas consideradas criminosas e as sanções correspondentes.

No entanto, há situações em que o Judiciário é chamado a intervir diante da ausência de legislação específica para determinadas condutas que demandam resposta penal. Um exemplo recente e emblemático desse cenário foi o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que reconheceu a homofobia e a transfobia como crimes de racismo.

Em uma decisão histórica, o STF, por maioria de votos, aprovou a tese proposta pelo relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), ministro Celso de Mello. A tese formulada em três pontos fundamentais estabelece um marco no combate à discriminação contra a comunidade LGBTQIA+ no Brasil.

Primeiramente, a tese reconhece que, até que o Congresso Nacional edite lei específica, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, se enquadram nos crimes previstos na Lei 7.716/2018, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, e, no caso de homicídio doloso, constituem circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe.

Em segundo lugar, a decisão estabelece que a repressão penal à prática da homotransfobia não restringe o exercício da liberdade religiosa, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio. Isso significa que a liberdade de crença e manifestação religiosa não pode ser utilizada como justificativa para promover ou incitar o ódio contra pessoas LGBTQIA+.

Por fim, a tese do STF ressalta que o conceito de racismo vai além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos e alcança a negação da dignidade e da humanidade de grupos vulneráveis. Ao reconhecer a homofobia e a transfobia como formas de racismo, o Supremo Tribunal Federal reforça o compromisso do Estado brasileiro com a promoção da igualdade e o combate a todas as formas de discriminação e intolerância.

No entanto, é importante ressaltar que a atuação do Judiciário nesse caso não substitui a necessidade de uma atuação legislativa efetiva. O reconhecimento da homofobia e da transfobia como crimes de racismo evidencia uma lacuna na legislação brasileira que precisa ser endereçada pelo Congresso Nacional por meio da elaboração de uma legislação específica que tipifique tais condutas e estabeleça as penas correspondentes de forma clara e precisa.

Em síntese, o caso da homofobia e transfobia demonstra como o Judiciário pode atuar na definição de tipos penais em situações de omissão legislativa, garantindo a proteção dos direitos fundamentais e a promoção da igualdade perante a lei. No entanto, também destaca a importância de um Legislativo atuante e sensível às demandas da sociedade na construção de um ordenamento jurídico mais justo e inclusivo.

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